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porSalvador Cândido Brandão Junior

A tributação de software sob encomenda. A inadequação do Parecer Normativo SF 1/2017*

A disputa entre Estados e Municípios pela detecção de materialidades tributáveis por seus respectivos impostos é, há muito, situação presente em nosso sistema tributário. Exemplo desta disputa é a tributação do software, na qual Estados e Municípios buscam tributar transações envolvendo software. Inicialmente, a disputa centrou-se na tributação do software vendido em varejo por meio de uma mídia física.

O Supremo Tribunal Federal encerrou este debate inicial no RE 176.626-SP, no qual foi firmada a já clássica divisão entre software sob encomenda, sujeito ao ISS, e software de prateleira, sujeito ao ICMS, este produzido em escala comercial para atender o público consumidor em geral.

Com o passar do tempo e o aprimoramento da internet nova modalidade de negociação do software de prateleira passou a ser praticada pelo mercado. Neste momento, o mesmo conteúdo da mídia física passou a ser comercializado e entregue ao usuário por meio de transferência eletrônica de dados – download.

A discussão, ainda sem definição, consiste em verificar se se trata mesmo de um novo fato, deixando de ser operação de mercadoria por não haver mais a mídia física ou se o download é apenas mais um meio de distribuição do software enquanto mercadoria. Mais uma vez o STF foi provocado, agora pela ADI 1945-MT, ainda pendente de julgamento.

No ano de 2015, o Confaz publicou o Convênio ICMS nº. 181/2015 autorizando os Estados conveniados a concederem específica redução de base de cálculo de ICMS nas operações com software, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, de modo que a carga tributária efetiva correspondesse ao percentual de no mínimo 5% (cinco por centro) do valor da operação, inclusive nas operações efetuadas por meio da transferência eletrônica de dados, o download.

Com isso, de uma forma indireta, concedendo um benefício fiscal, parte-se da premissa de que a operação com software de prateleira, seja ele vendido em meio físico, seja vendido via download, é fato gerador do ICMS.

Enquanto isso, a realidade tecnológica avança mais uma vez para passar a comercializar o softwareatravés da internet. Nesta modalidade, o usuário não tem acesso ao software por uma mídia física de instalação ou pelo download de um arquivo de instalação. O acesso ao software passa a ser obtido por meio da internet, geralmente pelo navegador web do cliente.

software, então, é instalado em infraestrutura denominada “nuvem” e disponibilizado acesso remoto ao usuário. Esta modalidade de fornecimento de software é denominada pelo mercado de “Software as a Service – SaaS”.

Para aumentar a discussão, o Município de São Paulo publica o Parecer Normativo SF nº 01/2017 com o objetivo de, conforme seu preâmbulo, “uniformizar a interpretação acerca do enquadramento tributário dos negócios jurídicos” envolvendo software, seja por meio de suporte físico ou por transferência eletrônica de dados (download), seja quando instalados em servidor externo (Software as a Service – SaaS).

Em síntese, o parecer normativo inclui estas modalidades de negociação envolvendo software na materialidade sujeita ao imposto sobre serviço, enquadrando-se, todas elas, no subitem 1.05 da lista de serviços da Lei Complementar 116/2003 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.

Longe e uniformizar a interpretação, termina por provocar mais confusões, na medida que inclui como serviço tanto tributável por ISS o denominado “software de prateleira”, contrariando a definição do STF no julgamento do RE 176.626-SP, ponto muito bem analisado por Tathiane Piscitelli e Roberto Vasconcelos[1], além de já afirmar a materialidade de serviço para software via download, situação ainda não definida pelo STF na ADI 1.945, entrando na disputa com os Estados e o Convênio nº 181/2015, bem como a tributação do SaaS por ISS pelo enquadramento desta modalidade de negociação como uma licença de uso, algo ainda sujeito a análise.

No entanto, referido Parecer Normativo ainda causa perplexidade na intenção de tributar por ISS o software elaborado sob encomenda por uma suposta existência de licença de uso, conforme dispõe seu artigo 2º.

Este tema não se trata exatamente de conflito de competência com os Estados, mas é relevante e vem gerando confusões em nossos tribunais[2] [3] e, além disso, teve sua repercussão geral reconhecida pelo STF no RE 688.223-PR.

Dois pontos merecem comentários:

1 – Licença de uso ou cessão de direito de uso de programa de computador nada mais e do que um contrato relacionado à propriedade intelectual. Assim, tributar a licença de uso de software produzido sob encomenda é uma contradição em termos, na medida em que, por expressa disposição legal, o direito autoral do software produzido sob encomenda é, via de regra, do próprio encomendante, conforme o disposto no art. 4º da Lei 9.609/1998.

Desta feita, nos casos de software por encomenda, não há licença de uso envolvida, pois, o direito autoral é do próprio usuário-encomendante, isto é, o contratante da encomenda. Não há sentido, portanto, em pretender tributar por ISS a licença de uso do software por encomenda se a licença é inexistente.

Cabe ressaltar, por oportuno, que é possível uma estipulação em contrato prevendo que o direito autoral do software seja do contratado prestador de serviço e não do encomendante tomador do serviço. Assim, nesta hipótese, haverá uma licença de uso prevendo os termos e as condições de uso do software pelo encomendante. De toda forma, não é a licença de uso que marca a tributação, mas sim a encomenda feita para a elaboração de um programa de computador sob medida. Esta encomenda é o fato tributável, pois, neste caso se está diante de uma nítida prestação de serviço para elaboração de um software por encomenda, mas, frise-se, não porque há licença de uso envolvida;

2 – A encomenda de software representa uma prestação de serviços, mas sua incidência deve ser devidamente classificada. Portanto, software por encomenda é sim uma prestação de serviços, sujeita ao ISS, mas por subsumir ao subitem 1.04 da lista de serviços anexa à lei complementar 116/2003, recentemente alterado pela Lei Complementar 157/2016, que contempla a prestação de serviços para a elaboração de programas de computadores.

A presente confusão deve ser sanada para afastar a insistência da municipalidade em tributar o serviço de elaborar um software sob encomenda por considerar a licença de uso – item 1.05 da lista anexa, o que pode prejudicar a própria arrecadação da administração pública, já que uma autuação fiscal nestes termos pode ser anulada por enquadramento incorreto do direito aplicável. Software sob encomenda não possui uma licença de uso envolvida, na medida em que, de regra, a titularidade do direito autoral do software resultante desta encomenda é do próprio contratante.

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* texto original publicado no portal Jota: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-tributacao-de-software-sob-encomenda-24082017
[1] https://jota.info/colunas/pauta-fiscal/tributacao-de-softwares-e-o-parecer-normativo-sf-012017-27072017

[2] Apelação nº 1030045-83.2015.8.26.0053. Rel. Des. Ricardo Chimenti. Publicação 19/05/2017

[3] EDcl no AgRg no AREsp 32.547/PR, rel. Min. Humberto Martins, DJe 19/12/2011